Autora de "O que é
Transexualidade" e "A Reinvenção do Corpo" compartilha um
interessantíssimo resumo sobre a transexualidade, que eu reproduzo a
seguir.
Transexuais, corpos e próteses
Berenice Bento
Labrys - Estudos Feministas - número 4 - agosto /dezembro 2003
Resumo:
Tomando a experiência transexual como recorte
empírico, desenvolvo uma reflexão sobre o significado do gênero e como ele se
articula com o corpo. Tentarei argumenta que não existe um nível
pré-discursivo, ou pré-social, fora das relações de poder-saber, na
estruturação das performances de gênero. O gênero, portanto, não é pensado como
um conjunto de formações discursivas que atuam sobre o corpo-sexual. A própria
história da construção dos corpos-sexuados, teorizados como naturalmente
diferentes, é mais um capítulo da disputa de saberes que se instaura na
modernidade. Não existe sexo sem gênero, in natura. Os corpos já nascem
maculados pela cultura, já nascem cirurgiados por tecnologias dicursivas
precisas que irão determinar e validar as formas apropriadas e imprópri as dos
gêneros.
Palavras-chave: transexual, gênero, corpo, cultura
"Você já fez alguma cirurgia?" Esta é uma
das primeiras perguntas que escutamos quando vamos a uma consulta médica. Esta
pergunta não tem sentido. Todos já nascemos cirurgiados. Não existem corpos
livres de investimentos e expectativas sociais. Tentarei explicar esta
proposição.
Começo com uma imagem: a mulher grávida espera com
ansiedade as palavras de seu médico. Já veio muitasvezes fazer a ecografia para
saber o sexo de seu bebê, ele/a não se permite ver. A mãe, inclusive, arrisca
um prognóstico: “teimoso assim, deve ser um menino”. Aquele aparato mágico
passeia por sua barriga, até chegar ali, ao sexo. Mágico no sentido de
construir realidades, expectativas e suposições sobre as performances daquela
promessa de corpo. Se o bebê está em uma posição que não permite ao médico ter
segurança sobre o sexo, se tentará por outro caminho, até conseguir definir,
sem dúvidas, sem ambigüidades, o verdadeiro sexo. “Parabéns mamãe, você terá um
menino!”
A futura mãe lhe agradece e vai para sua casa.
Antes, porém, não se controlando de tanta felicidade, decide sair às compras,
enquanto pensa: “Agora eu posso adiantar o enxoval”. Entra em uma loja. A
vendedora lhe pergunta:
" Já sabe o sexo do bebê?"
É um menino!
Então, te mostrarei a sessão para os homenzinhos”.
Quando este corpo vir a luz do dia, já carregará um
conjunto de expectativas sobre seus gostos, seu comportamento e sua
sexualidade, antecipando um efeito que se julga causa. A cada ato do bebê a/o
mãe/pai interpretará como se fosse a “natureza falando”. Então, se pode afirmar
que todos já nascemos operados, que somos todos pós-operados. Todos os corpos
já nascem “maculados” pela cultura. A interpelação que “revela” o sexo do corpo
tem efeitos protéticos: faz os corpos-sexuados. Analisar os corpos enquanto
próteses significa livrar-se da dicotomia entre corpo-natureza versus
corpo-cultura e afirmar que, nesta perspectiva as/os mulheres/homens
biológicas/os e as/os mulheres/homens transexuais se igualam[1].
Esta é a primeira cirurgia a que somos submetidos.
A cirurgia para a construção dos corpos sexuados. Neste sentido, todos somos
transexuais, pois, nossos desejos, sonhos, papéis não são determinados pela
natureza. Todos nossos corpos são fabricados: corpo-homem, corpo-mulher[2].
A infância é a época em que se dá os treinamentos
necessários para continuar o trabalho de fabricação dos corpos sexuais.
Bonecas, panelas, saias, cores delicadas, jogos que exigem pouca força física
para as meninas; revólveres, cavalos, bolas, calças, cores fortes para os
meninos. Tudo muito separado. É como se as “confusões” nos gêneros provocassem
imediatamente confusões na orientação sexual. O grande projeto que articula a
panóptica dos gêneros[3] é a preparação dos corpos para a vida heterossexual.
Nada escapa aos olhares de um/a pai/mãe cuidadoso/a que observa a forma como
seus filhos/as se sentam, caminham, gesticulam, falam. A família, porém, não
está só nesta tarefa, articula-se com Estado que, mediante a normatização da
vida, naturaliza as relações heterossexuais, a medicina, a igreja, a escola. O
projeto de construção dos corpos heterossexuais nunca está concluído.
O que nos revela a experiência transexual? Diz que
a primeira cirurgia não foi bem sucedida, que todas aquelas verdades inculcadas
desde que se nasce, não foram suficientes para garantir uma identidade, um
sentido para suas vidas.
Para a posição oficial[4] o objetivo principal da
cirurgia de transgenitalização seria permitir a ascençãpà heterossexualidade.
Sabemos que para muitos/as pessoas transexuais não é a procura de relações
heterossexuais que as/os leva a fazer as cirurgias. Há muitos transexuais
masculinos que se definem gays e transexuais femininas que se definem lésbicas[5].Nestes
casos vê-se que, de fato, a sexualidade está deslocada de qualquer referência
biológica[6].
“Então, para que fazer a cirurgia? Qual é o sentido
de se ter uma vagina se o que se deseja é manter relações com uma mulher?"
Para muitos médicos e especialistas no tema, a homossexualidade está totalmente
descartada entre os/as transexuais. Porém, quando uma pessoa afirma: “Eu tenho
um corpo equivocado, sou um/a homem/mulher aprisionada em corpo de
homem/mulher”, não significa que “ser mulher/homem” é igual a ser
heterossexual. Quando a sociedade define que a mulher de verdade é
heterossexual se deduz que uma mulher transexual também deverá sê-lo.
As definições do que é um/a mulher/homem "de
verdade" se refletem nas definições do que é um/a transexual "de
verdade". A experiência transexual põe em funcionamento os valores que
estruturam os gêneros na sociedade. São estas concepções que orientam os
médicos e os profissionais da saúde quando se aproximam das pessoas
transexuais. Se a sociedade afirma que o normal é a heterossexualidade, logo,
se alguém se diz mulher/homem deverá ser heterossexual e deverá ser o objetivo
principal que motiva a cirurgia, recuperando-se, assim, o dimorfismo por outros
caminhos.
De uma forma geral, se estabelece uma relação
direta entre cirurgia de transgenitalização e sexualidade. Diante da questão:
“E se você não sentir prazer depois da
cirurgia?". Quase todos/as respondem: “Tanto faz. O que quero é que se
alguém me negar um emprego porque sou diferente, eu possa dizer: mas eu tenho
vagina, sou uma mulher”.
Os/as transexuais que reivindicam as cirurgias não
são motivados, principalmente, pela sexualidade, mas para que as mudanças nos
seus corpos lhes garanta a inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade
divide-se em corpos-homens e corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa
correspondência fundante tendem a estar fora da categoria do humano.
A experiência transexual revela a possibilidade de
resignificar o masculino/feminino, mostrando seu caráter performático. As/os
mulheres/homens biológicos também, em suas ações cotidianas interpretam o que é
a mulher/homem "de verdade", isto porque a verdade dos gêneros não
está no corpo- já nos diz a experiência transexual -mas nas possibilidades
múltiplas de construir novos significados para os gêneros. Em última instância,
é o que nos diz os/as transexuais, os tranvestis, as drag king, os drag queen,
ou seja, as performatividades queer.
Citações contextualizadas e descontextualizadas
O sistema binário dos gêneros produz e reproduz a
idéia de que o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas
constitutivas dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial: a
natureza determina as sexualidades e posiciona os corpos de acordo com as
supostas disposições naturais. No entanto, como aponta Butler (1999), quando a
condição de gênero se formula como algo radicalmente independente do sexo, o
gênero mesmo se torna vago e, talvez, neste momento, se tenha de pensar que o
sexo sempre foi gênero e que não existe uma história anterior à própria prática
cotidiana das reiterações. Reiterar significa que é através das práticas, de
uma interpretação em ato das normas de gênero[7], que o gênero existe se faz,
existe.
O gênero adquire vida através das roupas que cobrem
o corpo, dos gestos, dos olhares, de uma estilística corporal e estética
definida como apropriada. São estes sinais exteriores, postos em ação, que
estabilizam e dão visibilidade ao corpo, que é basicamente instável, flexível e
plástico. Essas infindáveis repetições funcionam como citações e cada ato é uma
citação daquelas verdades estabelecidas para os gêneros, tendo como fundamento
para sua existência a crença de que são determinados pela natureza.
Butler apoia-se na tese da citacionalidade de
Derrida (1991) para afirmar que é a repetição que possibilita a eficácia dos
atos performativos que sustentam e reforçam as identidades hegemônicas;mas,
também são as repetições descontextualizadas do “contexto natural” dos sexos,
consideradas pela autora enquanto “performatividades queer"(Butler, 1999,
1998, 2002) que possibilitam a emergência de práticas que interrompam a
reprodução das normas de gênero e abre espaço para produção de contra-discursos
à naturalização das identidades.
Com a fórmula “a escrita é repetível”, Derrida
(1991) enfatiza os processos de produção das identidades. O que caracteriza a
escrita é precisamente o fato de que sua eficácia está na capacidade de
reproduzir-se na ausência de quem a escreveu e até mesmo na ausência de seu
suposto destinatário, conferindo-lhe um caráter de independência. É nesse
sentido que Derrida dirá que a escrita é repetível. A essa capacidade de
repetição da linguagem e da escrita Derrida chama de citacionalidade, podendo
ser retirada de um determinado contexto e inserida um outro.
Quando alguém diz “veado” ou “sapatão”, não está
emitindo uma opinião pessoal; está efetivando uma operação de recorte e
colagem. Ao retirar a expressão do contexto social mais amplo em que ela foi
tantas vezes enunciada, realiza-se a primeira operação: o recorte. Depois,
ocorre o encaixe em um novo contexto, no qual ela reaparece escamoteada como
uma opinião pessoal, mas que é uma citação resignificada a novos contextos.
As enunciações “bicha”, “macho-fêmea”, “sapatão”,
"mulher", "homem" são citações que têm sua origem em um
sistema mais amplo de operações de recorte e cola. Segundo Derrida (1991), um
enunciado performativo não poderia ser bem sucedido se sua formulação não
citasse um enunciado “codificado” ou repetível. Embora a intenção do ato não
desapareça, ele não comandará todo o sistema e toda a cena da enunciação, uma
vez que essa cena encontra-se “amarrada” a uma série de enunciados vinculantes
que lhe confere sentido.
Em Derrida (1991), há uma releitura da obra de
Austin (1990) para proposição de suas teses sobre os jogos que se articulam
para a produção de identidades na e pela diferença, mediante enunciados
lingüísticos. Butler, por sua vez, apropria-se (recorta) das reflexões de
Derrida (teoria da citacionalidade) e de Austin (atos da fala), e insere (cola)
essas contribuições para propor um teoria sobre as práticas de gênero. Segundo
ela, são as repetições das verdades para os gêneros que criam a sedimentação
das normas de gênero e uma aparente a-historicidade. A partir do enunciado:
"parabéns, mamãe, você terá uma menininha!", gera-se e desencadeia-se
um conjunto de efeitos vinculantes que criam a suposição do que seja "uma
menina".
As performances de gênero seriam ficções sociais
prevalentes, coactivas, sedimentadas, gerando um conjunto de estilos corporais
que aparecem como uma organização natural (e daí deriva seu carácter ficcional)
dos corpos em sexos, em uma relação binária e complementar. A performatividade
não é um “ato” único, singular, são as reiterações das normas ou conjunto de
normas. O fato de adquirir o status de um ato no presente gera o ocultamento
das convenções das quais ela deriva.
A repetição estilizada formará o cimento das
identidades dos gêneros, mas essas repetições em atos não são originalmente
inventadas pelo indivíduo. Nas diferentes maneiras possíveis de repetição, na
ruptura ou na repetição subversiva desse estilo, é que se encontrarão possibilidades
para subverter as normas de gênero.
A sociedade tenta materializar nos corpos as
verdades para os gêneros através das reiterações das instituições sociais. A
necessidade permanente do sistema em afirmar e reafirmar a dicotomia inrelativizável
dos gêneros, indica que o sucesso e a concretização desses ideais não ocorrem
como se deseja, demonstrando que este sistema não é um todo coerente. As
possibilidades de rematerialização, abertas pelas reiterações, podem
potencialmente gerar instabilidades, fazendo com que o poder da lei regulatória
volte-se contra ela mesma É nesse cenário de fissuras, contradições rizomáticas
que se deve analisar a experiência transexual.
As reiterações do sistema em afirmar a determinação
da natureza sobre os gêneros revelam que o gênero não é uma identidade estável,
mas identidade debilmente construída no tempo. Para Butler, o gênero não é uma
essência interna. Essa suposta “essência interna” seria produzida mediante um
conjunto de atos postulados por meio da estilização dos corpos. O que se supõe
como uma característica natural dos corpos é algo que se antecipa e que se
produz mediante certos gestos corporais naturalizados.
Para Butler, o gênero é um ato que já foi ensaiado,
muito parecido a
"un libreto que sobrevive a los actores
particulares que lo han utilizado, pero que requiere actores individuales para
ser actualizado y reproduzido una vez más como realidade." (Butler,
1998:307)
Ao formular “gênero” como uma repetição estilizada
de atos, Butler abriu espaço para a inclusão de experiências de gênero que
estão além de um referente biológico. Os atos generificados são, então,
interpretados como citações de uma suposta origem. Agir de acordo com um/a
homem/mulher é pôr em funcionamento um conjunto de verdades que se acredita
estariam fundamentadas na natureza.
No entanto, quando se age e se tenta reproduzir a/o
mulher/homem “de verdade”, desejando que cada ato seja reconhecido como aquele
que nos posiciona legitimamente na ordem de gênero, nem sempre o resultado
corresponde àquilo definido e aceito socialmente como atos próprios a um/a
homem/mulher. Se as ações não conseguem corresponder às expectativas
estruturadas a partir de suposições, abre-se uma possibilidade para se desestabilizar
as normas de gênero, que geralmente utilizam da violência física ou/e
simbólica. A patologização é um dos mecanismos utilizados para manter as
práticas que divergem do modelo hegemônico dos gêneros às margens do
considerado humanamente normal
A busca por reproduzir uma natureza em ato faz com
que tenhamos de estar interpretando as normas, o que é feito a partir de
suposições, da parte do sujeito, e de expectativas, por parte do outro, que
espera que os atos correspondam à natureza dos corpos. Tanto as suposições
quanto as expectativas estão costuradas pelas idealizações dos gêneros, aquelas
verdades que definem os comportamentos, os desejos e os pensamentos apropriados
para homens/mulheres.
A intenção de (re) produzir o modelo hegemônico da
mulher (bondosa, compreensiva, passiva, sensível, vaidosa e, principalmente,
que tenha o matrimônio como destino) e do homem (que não chora, viril, sexual e
profissionalmente ativo, competitivo) potencialmente provoca sentimentos de
frustração e de dor.
As idealizadas dos gêneros geram hierarquia e
exclusão. Os regimes de verdades estipulam que certos tipos de expressões
relacionadas com o gênero são falsos ou carentes de originalidade, enquanto
outros são verdadeiros e originais, condenando a uma morte em vida, exilando em
si mesmo sujeitos que não se ajustam às idealizações.
As idealizações são as bases para a reprodução das
normas de gênero. Quando se pergunta “o que é ser mulher/homem?”, ou “o que te
leva a sentir-se mulher/homem?”, são articulados enunciados que funcionam como
idealizações.
As performances de gênero que reivindicam a
inteligibilidade fora dos marcos naturalizantes teriam o efeito de fazer
proliferar diversas configurações de gênero, como se fossem camadas sobrepostas
de resignificação do masculino e do feminino, em um movimento contínuo de
produção de metáforas que simultaneamente podem desestabilizar a identidade
substantiva e privar as narrações naturalizadas da heterossexualidade do seu
protagonismo central.
Essas possibilidades, no entanto, dão-se pela
mediação entre as idealizações e as práticas concretas. Por essas idealizações,
as mulheres de verdade são heterossexuais, desejam ser mães, são passivas e
emocionalmente frágeis. Nessa perspectiva, não há possibilidade de articular as
esferas constitutivas dos sujeitos fora desse roteiro. Os deslocamentos são
vistos como problemas individuais, talvez fruto de algum "distúrbio",
como seria o caso dos/as transexuais.
Há muitas maneiras para realizar essas citações, ou
seja, de atualizar, nas práticas, as reiterações que legitimam um enunciado. Há
citações descontextualizadas de um insulto homofóbico, que estão fora das
normas e jogam com elas seguindo uma orientação política. É o que Butler
chamará de “performatividade queer”, que tem como objetivo criar fissuras,
contra-discursos.
O fracasso para se fazer “real” através da
encarnação do “natural” constitui as práticas de gênero. É como se houvesse um
sorriso subversivo no efeito pastiche das práticas paródicas, em que o
original, o autêntico e o real também estão constituídos como efeitos de
tecnologias que constróem os corpos sexuados.
Outros caminhos podem levar a compreender a teoria
da performance de Butler. As fotografias de Loren Cameron é um deles. A
estílistica corporal materializada nas suas fotos nos revela a plasticidade do
corpo, ao mesmo tempo em que a auto-aplicação dos hormônios, indica,
metaforicamente, que o gênero é um projeto que nunca está concluído. Os
hormônios estão para as/os mulheres/homens transexuais assim como o forma de
caminhar, de sentar-se, a estética está para as/os mulheres/biológicas. Para
ambos, ser de um gênero passa, necessariamente, pelo reconhecimento social
desse pertencimento, o que se efetiva através de múltiplos efeitos protéticos.
O corpo viril e musculoso de Loren, um homem
transexual, nos conta uma história de conflito e exclusão. Loren teve que
refazer a cirurgia fundante, aquele que determinou que ele deveria atuar e agir
como uma mulher por ter uma vagina. Se a origem do somos está nas nossas
estruturas biológicas quem é Loren Cameron? Como separar a parte do corpo que
não foi construída desde sempre por expectativas e suposições do corpo original
que não está maculado pela cultura? Onde está a origem?
Estereótipos e paródias nas performances de gênero
Para os gêneros as suposições funcionam como se
houvesse uma essência interior que marca a existência da mulher e do homem.
Cada ato é interpretado como se fosse “a natureza” falando em atos. Essa
suposição gera um conjunto de expectativas baseadas nas idealizações de uma
“natureza perfeita”, como é o exemplo do “instinto materno” ou do “homem naturalmente
viril e forte”. No entanto, a verdade dos gêneros não está nos corpos; estes,
inclusive, devem ser observados como efeitos de um regime que não só regula mas
cria as diferenças entre os gêneros.
A experiência transexual destaca os gestos que dão
visibilidade e estabelecem o gênero através de negociações e de interpretações,
na prática, do que seja um homem e uma mulher. Então, a aparente cópia não se
explica em referência a uma origem. A própria idéia de origem perde o sentido e
deve-se passar a considerar a/o mulher/ homem biológica/o também como cópia,
cópias sem origem, uma vez que estes também assumem e fazem o gênero da mesma
forma que os/as transexuais : através da reiteração dos atos.
Nessa perspectiva, não existe um referente natural,
original para se vivenciar as performances de gênero. O original, segundo às
normas de gênero, está referenciado no corpo (corpo-vagina-mulher,
corpo-pênis-homem); é aí que residiria a verdade dos gêneros e aqueles que
constróem suas performances fora do referente biológico interpretado enquanto
tentativa de cópia da mulher/homem de verdade, paródias, mentiras. Nesse
processo, os gays, as lésbicas, os transexuais, os travestis, a mãe
“desnaturada” são excluídos daquilo que se considera humanamente normal. Para
uma concepção essencializadora, práticas performativas não passam de cópias
burlescas das mulheres e dos homens "de verdade".
Uma derivação daqueles que analisam a experiência
transexual como uma imitação das mulheres/homens "de verdade” está nos que
os/as qualificam como reprodutores dos estereótipos. Tal afirmação reforça, por
outros caminhos, a tese de que existe uma verdade única para os gêneros.
Para Collete Chiland (1999), uma das
características dos/as transexuais é a reprodução dos estereótipos de gênero.
Segundo ela,
"El discurso de los transexuales interrogados
sobre lo que es la masculinidad o la feminilidad es notablemente pobre y
conformista. El discurso típico de un transexual varon biológicamente es: “me
casaría, me quedaría en la casa, me ocuparía de la cocina esperando que vuelva
mi marido a la casa, pasearía a mi niño (adoptado, en un landau)”. Para no
encontrarse reducidas a eso, las mujeres de nuestra cultura lucharon durante
decenios, incluso siglos. (Chiland, 1999:71)
Pode-se inferir, por essa avaliação, que as
mulheres biológicas já teriam superado os estereótipos de gênero, sendo as
mulheres transexuais as responsáveis por recordarem uma época de subordinação
das mulheres. No entanto, as performances discursivas que reproduzem a
idealização da mulher dona de casa, esposa fiel, mãe, não se limitam às
mulheres transexuais.
As teses de Chiland encontram-se com às de Janice
G. Raymond (1979), conhecida por contrapor-se enfaticamente às transexuais
femininos, denunciando-os como um embuste, uma tentativa a mais de o poder
patriarcal invadir o território feminino, chegando a sugerir que os/as
transexuais teriam a função de liquidar a população feminina. As mulheres
naturais deveriam, segundo a autora, denunciar e resistir a essa nova forma de
dominação. Será que uma leitura culpabilizante, como a que faz Chiland ou
essencialista como à de Raymond, são suficientes para explicar os complexos
mecanismos de entrada no mundo do gênero identificado pelos/as transexuais? O
desafio é tentar compreender os mecanismos sociológicos que se articulam para
que alguns/umas transexuais se identifiquem discursivamente com determinadas
performances de gênero qualificadas como retrógradas, submissas.
Deve-se seguir perguntando: não seria equivocado
exigir que as/os transexuais sejam naturalmente subversivos/as, quando também
compartilham os sistemas simbólicos socialmente significativos para os gêneros?
Será que a própria experiência já não contém em si um componente subversivo, à
medida que desnaturaliza a identidade de gênero? Será que não é precisamente
por isso que os profissionais que estão envolvidos com a produção do
diagnóstico tenham de construir margens excludentes que, algumas vezes,
posiciona-os/as como “transtornadas”, “psicóticas” ou, em uma versão “mais
amena”, reprodutoras dos estereótipos de gênero?
Embora correndo o risco de cansar a/o leitor/a,
ainda se deve perguntar: o que são estereótipos de gênero? Idéias
preconcebidas? Juízos resultantes de determinadas expectativas que, por sua
repetição, são rotinizados como verdades? Mas, todos os sujeitos sociais não
atuam de acordo com determinadas expectativas e suposições que, acredita-se,
são as apropriadas para o seu gênero? Qual o sentido ou mesmo a
operacionalidade teórica dos "estereótipos de gênero"?
De uma forma geral, os/as transexuais sentem
dificuldades em falar de seus conflitos porque não sabem como nomeá-los. Como
explicar às pessoas que seu desejo é vivenciar a experiência de outro gênero se
seu órgão genital atua subjetivamente como o obstaculizador dessa possibilidade
de trânsito? Para terem mais segurança no processo de inserção no mundo do
outro gênero, alguns/umas tentam reproduzir o modelo da mulher submissa e do
homem viril, pondo em destaque traços hegemônicos dos gênero.
As identidades não são monolíticas nem coerentes
como nos fazem acreditar alguns discursos psicanalíticos que constroem, assim,
uma representação estereotipada dos/as transexuais, ao apontarem que seus
discursos são “pobres e conformistas” (Chiland, 1999).
Concordamos com Foucault (1996) quando afirma que,
ao se estudar os procedimentos de controle e de delimitação dos discursos,
deve-se estar atento ao dito e ao não dito, aos silêncios como partes
estruturantes dos discursos. É necessário tentar identificar as diferentes
maneiras de não dizer e como são distribuídos o que se pode e o que não se pode
dizer.
Considerando tal assertiva como válida, pode-se
questionar a representação dos/as transexuais como um todo homogêneo,
monolítico, sem contradições e diferenças internas ou, o que seria o mesmo, que
os níveis discursivo e prático devem ter uma correspondência, dando a impressão
de que só há uma única forma de vivenciar essa experiência. Aquele que consegue
se ajustar às definições e aos critérios estabelecidos para um transexual seria
um “transexual verdadeiro”. Tal representação é construída levando em conta
exclusivamente um momento da vida dessas pessoas: a consulta, dentro de um
determinado campo social, o hospital. Existem conflitos entre os sistemas
discursivos, conforme salientou Scott (1999) e contradições internas a cada um
deles, o que retira o caráter transparente, óbvio, destes discursos,
tornando-os mais complexos e escorregadios.
Além da importância de relacionar a enunciação dos
discursos aos campos sociais nos quais são proferidos, pode-se sugerir outra
possibilidade explicativa para que se representem os/as transexuais como
“reprodutores dos estereótipos de gênero” e que se refere à forma como entram
no campo do gênero identificado. As/os transexuais foram socializados/as em
instituições que os/as prepararam para atuar de acordo com o gênero que lhe foi
atribuído.
Geralmente, depois de um longo período de
impedimentos, começam a vivenciar experiências do gênero com o qual se
identificam. No entanto, não tiveram acesso à socialização de uma menina (para
as transexuais femininas) ou de um menino (para os transexuais masculinos),
tampouco vivenciaram os processos de interiorização das verdades que resultam
na incorporação de uma determinada estilística dos gêneros, terão de
aprendê-las. A questão que norteai a construção de suas performances é
encontrar pontos de apego que os/as habilitem como membros legítimos do gênero
identificado.
Não se está afirmando que existam mulheres e homens
“de verdade” levando-se em conta a socialização primária; apenas deve-se
destacar que, quando alguém se reconhece como transexual e, portanto, até
determinado momento de sua vida obteve a educação de um gênero que ele/a
rejeita, deverá, a partir daí, fazer um conjunto de movimentos para se
incorporar ao novo gênero.
É neste movimento de convencimento e inserção no
mundo do outro gênero que a discussão do real e do fictício aparece. O “real” é
identificado como a verdade, e a verdade é ditada pelos imperativos do corpo.
Outra vez, retomamos as perguntas: o que é um homem e uma mulher "de verdade"?
O que é ter sentimentos femininos e masculinos? Como concluir que este ou
aquele sentimento é mais ou menos feminino/masculino? Como reconhecer um/a
homem/mulher "de verdade"?
Ao se destacar o aspecto “estereotipado” das
práticas transexuais, por um lado se reforça a tese de que há uma verdade para
os gêneros referenciada no corpo-sexuado; por outro, não se problematiza as
múltiplas interpretações e as práticas internas à experiência transexual sobre
o masculino e o feminino à medida em que são apagadas sob a rubrica de
“transexuais”. A patologização das experiências de gênero que estão às margens
da norma, encontra aí um argumento para justificar a permanente produção de um
saber que institui e posiciona o transexual como um enfermo, um transtornado.
Contrapondo-me a essa visão, seguindo Butler (1999), proponho interpretar as
performances de gênero enquanto paródias, desfazendo os limites e as fronteiras
que separam o natural do artificial, o real do irreal, a verdade da mentira.
Quando os/as transexuais atualizam em suas práticas
interpretações do que seja um/a mulher/homem através de atos corporais
materializados em cores, modelos, acessórios, gestos, o resultado é uma paródia
de outra paródia, que desestabiliza a identidade naturalizada, centrada no
homem e na mulher “biologicamente normais”.
O que diferencia as paródias das/os mulheres/homens
biológicas/os das/os transexuais é a legitimidade que as normas de gênero
conferem a cada uma delas, instaurando, a partir daí, uma disputa discursiva e
uma produção incessante de discursos sobre a legitimidade de algumas existirem
e de outras serem silenciadas.
Homens-pênis, mulheres-vagina?
Segundo o pensamento oficial todos/as transexuais
desejam como solução para seus conflitos a realização das cirurgias de
transgenitação. Este cânone, no entanto, tem sido questionado por muitos/as
transexuais que reivindicam suas identidades de gênero legal sem se submeterem
à cirurgia. Diante de casos como estes, muitos questionam:
“se uma pessoa é um/a homem/mulher, aprisionado/a
em um corpo equivocado, por que não mudam este corpo?”
As mudanças são feitas. Muitos/as tomam os
hormônios, fazem depilações definitivas e outros procedimentos para adquirir
uma aparência do gênero identificado, não querem, porém, fazer a cirurgia de
transgenitalização.
Os/as transexuais não cirurgiados afirmam:
“Eu sou um/a homem/mulher, quero o direito a minha
identidade de gênero, mas não tenho problema com minha genitália”. Como
respondê-los/as? “Não, se você é um/a homem/mulher, onde está tua/teu
vagina/pênis?”
Então, como classificá-los? Qual é o lugar deles/as
na vida social? Eles/as não existem? Negar a legitimidade da existência de
experiências que negam a determinação natural das identidades é o caminho mais
eficaz para gerar hierarquias e exclusões. Ao deslocar a identidade de gênero
do corpo-sexuado, os/as transexuais abrem caminho para nos libertar, os
cirurgiados-conformados, do cárcere do corpo.
A discussão sobre a importância da cirurgia para
definição da legitimidade da identidade de gênero reivindicada pelo/a
transexual vem assumindo um papel de destaque entre os coletivos transexuais.
Em uma reunião de um coletivo transexual na Espanha, enquanto uma mulher
transexual defendia a legitimidade da luta pela identidade de gênero sem
cirurgia, uma outra mulher transexual comentou ao meu ouvido:
“Eu respeito aquelas que não querem fazer a
cirurgia, eu, porém, sempre quis minha vagina. Agora que sou uma mulher
completa, desejo que a primeira noite seja muito especial. Você sabe...como
toda mulher quero meu príncipe, quero chegar à primeira noite virgem."
Naquele momento não quis dizer-lhe o que penso
sobre “príncipes encantados” ou sobre a “virginidade”. O brilho de seu olhar e
a forma como ela falava de "nós", as mulheres, me silenciaram. Mas,
quem somos nós? Quais são os elementos identitários que possibilita construir a
unidade entre as mulheres? Quais são as características internas próprios do
ser mulher que as particularizam e ao mesmo tempo as diferencia deles, os
outros?
Seu discurso falava de uma mulher idealizada,
quando digo idealizada estou referindo-me às expectativas construídas
socialmente para os gêneros, materializada na idéia da pureza feminina. Estas
idealizações são lugares inabitáveis, mas que geram, concretamente, na vida das
pessoas, dor e culpa. Quantas mulheres, biológicas ou não ( não faço
distinção), não sofrem porque não são mães ou porque não conseguem desempenhar
com êxito as expectativas sociais de "uma boa mãe"? Quantos prantos
de homens não ficaram presos em suas gargantas porque um homem de verdade não
chora? Quantos/as homens/mulheres não desejaram e amaram a outros
homens/mulheres no silêncio ruidoso de seus corações?
Este sentimento de ser incompleto ou estar em
débito nos persegue porque o fundamento que se supõe determinante das
identidades e demiurgo dos desejos, o corpo, é o resultado de próteses
discursos.
Referências bibliográficas:
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Berenice Bento é doutora em sociologia pela
Universidade de Brasília (com
bolsa sanduíche na Universidade de Barcelona).
Atualmente é Pesquisadora
Associada do Departamento de Sociologia da UnB e
consultora do Grupo de
Identidad de Género y Transexualidad/España. Entre
outros artigos escreveu
Ciladas da Igualdade, A (re) da Identidade
Masculina e Cuerpo, Performance
y Género en la Experiencia Transexual.
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[1] Para uma discussão sobre corpos-próteses, ver
Preciado (2001).
[2] Para uma análise da construção dos
corpos-sexuais, ou dimorfismo, ver Laqueur (2001).
[3] Refiro-me à “panóptica dos gêneros” em uma
alusão a uma das características do poder disciplinar foucautiano. Segundo
Foucault (1993), um conjunto de métodos que permite o controle minucioso das
operações dos corpos, que assegura a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docibilidade-utilidade nos primórdios do capitalismo,
deve ser considerado como “poder disciplinar”. Uma das características desse
poder é realizar um contínuo e permanente controle, até chegar ao ponto de
penetrar nos lugares mais íntimos da vida e corpo do sujeito. Esse poder
consegue sua eficácia quando o vigiado impregna-se do olhar do vigiador,
adquirindo, assim, de si mesmo a visão de quem o olha. Um exemplo da
implementação dessas novas técnicas seria o Panopticon, de Jeremy Bentham. A
concepção de “poder disciplinar” de Foucault (1993) nos auxilia à compreensão
dos processos de construção dos corpos-sexuados e da incorporação de uma
estilística corporal, uma vez que são produzidas a partir de um conjunto de
estratégias discursivas e não discursivas, fundamentadas na vigilância das
condutas apropriadas.
[4] Considera-se como posição oficial às da Associação
Internacional de Disforia de Gênero Harry Benjamin e os da Associação Americana
de Psiquiatria. Estas Associações são as responsáveis por definir os
"tratamentos" e protocolos que devem ser aplicados às/aos transexuais
nos hospitais e clínicas que realizam as cirurgias de transgenitalização. Sobre
a história dessas Associações, ver Bento (2003).
[5] Ao longo de três anos realizei trabalho de
campo em um hospital público brasileiro no qual se realiza as cirurgias de
transgenitalização e em coletivos transexuais na Espanha para minha tese de
doutorado. As referências a casos empíricos estão respaldadas em entrevistas
realizadas no decorrer desse período. Sobre a construção, encaminhamentos e
conclusões da pesquisa, ver Bento (2003).
[6] Por “transexuais femininas” ou “mulheres
transexuais” refiro-me aos homens biológicos que se sentem mulheres e por
“transexuais masculinos” ou “homens transexuais”, as mulheres biológicas que se
sentem homens.
[7] Seguinte Butler (1999), entende-se por normas
de gênero as idealizações que estabelecerão os domínios da masculinidade e
feminilidade apropriadas e impróprios e que estão fundamentadas no dimorfismo
ideal e na complementaridade heterossexual dos corpos. O dimorfismo, a
heterossexualidade e as idealizações serão as bases que constituirão o que
Butler designou por “normas de gênero” e que terão como finalidade estabelecer
o que será inteligivelmente humano e o que não, o que se considerará “real” e o
que não, delimitando o campo ontológico no qual se pode conferir aos corpos
expressão legítima.